por Márcio Adriano Moraes
Publicado postumamente, Encarnação é o último romance de José de Alencar, escrito no ano de sua morte, 1877. Trata-se de uma obra singular em sua produção, pois, embora mantenha marcas românticas, como a exaltação do amor, o sentimentalismo e o culto da idealização feminina, também apresenta elementos de introspecção psicológica, espiritualismo e reflexões existenciais que a aproximam de um viés moderno.
A narrativa se estrutura a partir da história de Carlos Hermano de Aguiar, homem solitário e enigmático, que vivera uma juventude brilhante nos salões da Corte carioca, mas que se retira para uma vida isolada após a morte precoce de sua esposa, Julieta. O casamento entre ambos fora marcado por uma intensa fusão amorosa e espiritual, de modo que a perda deixou em Hermano uma ferida incurável. Sua viuvez é retratada como um estado de suspensão, em que a memória da esposa ocupa todos os espaços da casa, da vida e da consciência do viúvo. Ele chega ao ponto de recriar sua presença por meio de objetos e esculturas de cera, tornando o luto uma espécie de culto.
É nesse cenário que surge Amália Veiga, jovem alegre, vaidosa e incrédula em relação ao amor. No início do romance, ela vê o casamento como mera conveniência social, desprovida de poesia e paixão. Sua personalidade leve e quase frívola contrasta com a melancolia de Hermano. Contudo, aos poucos, Amália se deixa impressionar pela intensidade do sentimento que o vizinho nutrira por Julieta, chegando a desenvolver por ele uma afeição que mistura amor, respeito e temor. O triângulo formado por Hermano, Amália e a lembrança de Julieta constitui a espinha dorsal do enredo.
Um dos eixos centrais de Encarnação é a indissolubilidade entre amor e morte. A relação de Hermano e Julieta é apresentada como fusão absoluta de almas, destinada a transcender a existência terrena. Quando a morte separa o casal, a vida do viúvo perde o sentido, e a presença da esposa passa a ser cultivada como encarnação espiritual. O título do romance remete justamente a esse processo: Julieta “encarna” na memória, nos objetos, nas estátuas, nos rituais cotidianos do marido. Ela não desaparece; torna-se ainda mais presente na ausência.
Esse culto, porém, gera um dilema existencial: Hermano se vê dividido entre permanecer fiel à esposa morta ou permitir-se amar novamente. O amor de Amália reabre a possibilidade de vida, mas também ameaça profanar a memória de Julieta. O drama é tanto psicológico quanto ético: como conciliar o dever da fidelidade eterna com o impulso vital de amar?
A trajetória de Amália no romance é, dessa forma, marcada pela transformação: de moça incrédula e leviana a uma mulher sensível e comovida pela intensidade do amor absoluto que descobre em Hermano. Mas essa mesma intensidade é que a apavora, pois ela percebe que jamais poderá ocupar por inteiro o lugar de Julieta. Desse modo, a obra tematiza a impossibilidade do amor total, ao mesmo tempo em que revela o peso opressor da memória e da idealização.
Encarnação é uma obra em que José de Alencar se afasta dos enredos heroicos e nacionalistas que marcaram romances como O Guarani (1857) ou Iracema (1865). Aqui, o espaço da ação não é a natureza grandiosa, mas o interior da alma humana. O drama se dá na consciência de Hermano, no choque entre memória e presente, entre Julieta e Amália. O autor investe na sondagem dos sentimentos, na oscilação entre desejo e recusa, na percepção de que o amor pode ser uma experiência que ultrapassa a realidade material.
O espiritualismo romântico é evidente: a ideia de que as almas podem permanecer unidas após a morte, de que a lembrança mantém viva a presença do ente amado, e de que o amor verdadeiro não se extingue com a separação carnal. Hermano não apenas se recorda de Julieta; ele a sente, a vê, a escuta. O romance flerta com o sobrenatural, mas sempre o mantém em registro psicológico: são os olhos da alma que veem, não os do corpo. Esse limiar entre realidade e ilusão confere à narrativa um tom de estranheza e mistério.
O romance se constrói em terceira pessoa, com um narrador onisciente que alterna entre a descrição objetiva e a penetração subjetiva. José de Alencar adota um estilo rebuscado, com metáforas floridas, comparações e imagens sensoriais que traduzem o universo romântico. Há uma musicalidade própria, perceptível nas descrições de Amália, que lembram o ritmo da dança e da música que animam sua juventude, em contraste com as descrições fúnebres e silenciosas do universo de Hermano.
O conflito é menos exterior e mais íntimo. Há uma luta de Hermano entre permanecer fiel à memória de Julieta ou se permitir amar Amália. Assim, o romance apresenta dois polos: de um lado, o culto à esposa morta, mantido por meio das estátuas de cera, do quarto intocado, das lembranças; de outro, a atração pelo amor vivo de Amália, que representa a possibilidade de recomeço. O dilema não se resolve em conciliação plena, mas em tragédia, marcada pelo peso insuportável do passado.
O título Encarnação tem múltiplos sentidos, podendo se referir à encarnação da memória de Julieta no espaço doméstico; à encarnação do amor ideal em Amália, que surge como reencarnação da primeira esposa; e à ideia de que o amor verdadeiro transcende a carne, encarnando-se no espírito. É um romance que se aproxima daquilo que Machado de Assis, pouco depois, desenvolveria em sua análise fina da alma humana, embora Alencar mantenha a herança romântica do idealismo.
Encarnação é, portanto, um romance de amor e morte, de memória e presença, de espiritualismo e desencanto. A história de Hermano e Amália não é apenas a de um triângulo amoroso, mas a reflexão sobre a impossibilidade de apagar o passado e a dificuldade de viver plenamente o presente quando se está preso à idealização do que se perdeu. A obra traduz o drama humano de amar em excesso, de amar além da vida, e de não conseguir reconciliar-se com o tempo. É, em suma, um romance sobre a presença da ausência, sobre a encarnação da memória e o peso insuportável da fidelidade ao que já não existe.