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Márcio Moraes
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Textos

Poemas escolhidos, de Ana Cruz (Sasi 2ª Etapa 2025)

por Márcio Adriano Moraes

Mineira, de Visconde do Rio Branco, Ana Cruz, nascida em 1965, exsurge na literatura brasileira na década de 1990 com o livro de poemas: E... Feito de luz, publicado aos 30 anos de idade. A sua poesia se inscreve no corpo da literatura afro-brasileira contemporânea como um ato de reinscrição da história e da identidade negra no território da linguagem. A poeta mina seu lirismo de vozes silenciadas, práticas culturais ancestrais e experiências pessoais e coletivas que interseccionam raça, gênero, território e espiritualidade. Cada poema analisado aqui, selecionados para a 2ª Etapa  da SASI da UFVJM 2025, constitui uma instância dessa poética que é, ao mesmo tempo, política, íntima e filosófica.

 

O poema “A Nossa Senhora” constrói, desde o título, um deslocamento semântico do ícone católico tradicional para uma representação enraizada na experiência afro-brasileira da mulher negra ancestral. A “Nossa Senhora” não é a virgem branca dos templos, mas uma mulher negra “com a pele preta aveludada”, que fuma cachimbo, lê o testamento (metáfora da história e da herança), e resiste à precariedade e ao abandono. Sua imagem se inscreve no campo da religiosidade popular, sincrética, e da memória insurgente. A crítica social é tecida com delicada violência simbólica: a chibata foi abolida, mas “o teto e a ternura também não existem mais”, indicando que a violência contra a população negra, sobretudo a mulher negra, apenas mudou de forma. A “liberdade” ainda é uma concessão, nunca um direito. A altivez dessa figura, sua fala firme, sua pedagogia do realismo (ensinando aos filhos a desilusão necessária para sobreviver), configuram-na como uma matriarca sagrada, cuja “consistência mineral, magnética, férrea, gusa incandescente” a aproxima de um orixá – metáfora que funde força espiritual e política.

 

Em “Coração Tição”, a poeta reivindica sua identidade afrodescendente com contundência. Ao recusar os termos “parda” e “mulata”, construções coloniais que buscam diluir a negritude e embranquecer os corpos, a poeta assume-se como “afro-brasileira-mineira”, o que implica um pertencimento geográfico, étnico e cultural consciente e orgulhoso. A menção à ancestralidade: “bisneta de uma princesa de Benguela” reativa uma genealogia apagada pela história oficial. Essa filiação simbólica constitui uma estratégia de retomada da dignidade histórica dos povos africanos escravizados. O “coração como um tição” aponta para a metáfora do fogo como força vital, como impulso de resistência, como calor da luta. Esse tição, incandescente, rejeita os mitos erotizantes que historicamente animalizaram o corpo da mulher negra. Ana Cruz, ao mencionar o “mito do fogo entre as pernas”, denuncia o olhar objetificante que confunde sexualidade com subalternidade, e reivindica um erotismo próprio, autônomo e não colonizado.

 

Raízes” é um poema de estrutura circular e de forte teor identitário. A repetição do verso “Pode não parecer, mas eu tenho uma história” denuncia uma invisibilidade social e histórica que é desmentida pela própria existência enraizada do sujeito poético. Essa história não é abstrata: ela tem casa, quintal, mina d’água, jequitibá. Há aqui uma simbologia da terra e da ancestralidade: o espaço físico, o corpo coletivo e o tempo cíclico se entrelaçam. A imagem do tear, que aparece quando o sujeito expõe o corpo para tecer nova pele, é uma metáfora pungente da transformação identitária e da resistência diante da dor. A presença das “galinhas d’angolas”, dos “saiotes” e do ambiente quilombola dá ao poema um ar de ritual coletivo, de festa da resistência, de reinvenção contínua. Ana Cruz traça assim uma cartografia afetiva e insurgente da sua negritude, que se enraíza e floresce mesmo em terrenos hostis.

 

Por fim, “No toque do tempo”  trabalha o tempo em sua dimensão não linear, numa perspectiva que se aproxima da filosofia iorubá e dos rituais de matriz africana. O tempo é marcado pela “batida do tambor”, o que o torna sensível, corporal, sonoro. Entre uma batida e outra, há o “meio tempo”, espaço de espera, de preparação, de conexão com o invisível. A dança, o nascimento, o canto da cigarra, a travessia da baía; todos esses elementos indicam o tempo como rito, como passagem e como espaço de consciência. O “tempo pro Ser compreender/ suas emoções/ se alforriar / e cessar” remete a uma ideia de autoconhecimento e de liberdade interior que não depende do relógio ocidental, mas do ciclo espiritual. Esse tempo de Ana Cruz é também o tempo das mulheres, o tempo da cura, da ancestralidade, o tempo da transformação social. A cigarra que prevê o tempo e morre nos ensina que todo processo de iluminação exige entrega. Nesse sentido, o poema se converte em uma meditação afro-diaspórica sobre o ritmo da existência, sobre os ciclos da vida, sobre o silêncio necessário entre uma luta e outra.

 

Considerando as articulações intertextuais, os quatro poemas partilham alguns pontos em comum: afirmação da identidade negra e crítica à mestiçagem como apagamento racial; relação com a ancestralidade, evocando avós, tias, princesas, santos e tradições afro-brasileiras; resistência feminina, materializada em figuras como a “Nossa Senhora” e a mulher que “não se deixa levar pelo mito”; espiritualidade negra como fonte de sabedoria e tempo próprio; linguagem concreta, marcada por metáforas sensoriais e imagens materiais (gusa, cachimbo, mina d’água, jequitibá, tambor); interseccionalidade entre raça, classe e gênero, inserindo as experiências da mulher negra nas tramas históricas do Brasil pós-colonial.

 

Há também diálogos sutis com outras vozes da literatura afro-brasileira, como Conceição Evaristo, com quem partilha o conceito de escrevivência, e Lélia Gonzalez, referência teórica da perspectiva afro-latino-americana. A fala política que emana dos versos se entrelaça com uma dimensão afetiva, poética e ritualística que potencializa a poesia de Ana Cruz como um instrumento de educação crítica, sensibilização estética e justiça histórica.

 

Ler Ana Cruz, portanto, é acessar um território alegórico de cura, denúncia e celebração. Seus poemas são ensinamentos tecidos por mulheres negras, vozes de ontem que ecoam no agora e apontam para o porvir. Sua obra cumpre o papel da poesia negra contemporânea: ser voz insurgente num país que tenta silenciar seus tambores. Ao trazer à tona imagens de corpos resistentes, saberes comunitários e espiritualidades ancestrais, Ana Cruz reconfigura a linguagem e desafia os cânones, abrindo espaço para novas temporalidades, novas senhoras e novas raízes.

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Márcio Adriano Moraes
Enviado por Márcio Adriano Moraes em 02/07/2025
Alterado em 02/07/2025
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