por Márcio Adriano Moraes
Mineiro de Itabira, Carlos Drummond de Andrade veio ao mundo em 1902 para ser “pedra” poética do século XX. Seu primeiro livro, publicado em 1930, Alguma poesia inaugura sua produção poética e representa um marco na consolidação da segunda fase do Modernismo brasileiro. O livro surge no limiar de uma mudança no panorama nacional: a Revolução de 1930 interrompe a República Velha, e o país entra em uma nova era política e social. Na literatura, a “fase heroica” do Modernismo (1922-1930), marcada pela ruptura radical com os padrões acadêmicos e pela ousadia formal, dá lugar a um momento de maior reflexão, maturação estética e aprofundamento existencial.
Drummond está entre os principais responsáveis por essa virada. Se Oswald de Andrade e Mário de Andrade haviam liderado as experimentações formais e temáticas da primeira geração modernista, Drummond, com sua poesia mais introspectiva e existencial, inaugura a transição para uma lírica mais universal, crítica e filosófica, ainda que profundamente enraizada no cotidiano brasileiro.
A figura do “poeta gauche” é o grande eixo simbólico de Alguma poesia (a construção do eu retorcido). Em “Poema de sete faces”, Drummond constrói um sujeito fragmentado, irônico e melancólico, marcado pelo estranhamento diante do mundo. Esse “eu” não é o gênio romântico, nem o cantor épico da pátria, mas um homem comum, desajustado, perplexo com as engrenagens da existência. O “anjo torto”, que o condena a ser gauche, representa o destino de quem não se encaixa nas formas convencionais da vida social e afetiva. A lírica drummondiana, a partir daí, revela um “eu” múltiplo: ora nostálgico, ora irônico; ora revoltado, ora apático. Essa multiplicidade traduz-se na diversidade temática e estilística do livro, que alterna o lirismo amoroso com a crítica social, a contemplação filosófica com o humor corrosivo.
A linguagem de Drummond, neste primeiro livro, é fortemente influenciada pelos princípios do Modernismo. Muitos poemas que o compõe foram escritos e alguns publicados em Revistas nos anos 1920, como o famoso “No meio do Caminho”, em 1928 na Revista de Antropofagia. O uso do verso livre, a sintaxe coloquial, a ironia, o tom de conversa e a exploração do humor ácido aproximam sua poesia da fala cotidiana. No entanto, diferentemente da irreverência antropofágica de Oswald, Drummond alia o tom prosaico a uma densidade reflexiva que aponta para um lirismo mais universal. Diversos poemas do livro têm estrutura epigramática, como “Quadrilha” e “Anedota búlgara”, em que a concisão e a virada final são carregadas de crítica e sarcasmo. A aparente simplicidade dessas composições esconde uma profunda elaboração formal, que transforma o banal em expressão poética.
Drummond também reflete, já nesse primeiro livro, sobre a própria poesia e seus limites, isto é, a metalinguagem. O poema “Poesia” traduz o embate entre a inspiração poética e a dificuldade de expressão: “Gastei uma hora pensando em um verso / que a pena não quer escrever”. A poesia aparece como algo indizível, que escapa ao poeta. Essa visão será retomada mais adiante, em A Rosa do Povo (1945) e Claro Enigma (1951), com diferentes abordagens, mas o tema já está presente desde Alguma poesia. Além disso, em “Poema que aconteceu”, a espontaneidade do fazer poético é explorada em tom quase zen: o poema nasce mesmo sem a intenção do poeta. Essa duplicidade, entre o poema que resiste à escrita e aquele que se impõe por si, marca a tensão entre controle e acaso, trabalho e inspiração.
Embora não seja um livro engajado nos moldes de A Rosa do Povo, Alguma poesia contém uma semente de crítica social. Em “Também já fui brasileiro”, o sujeito lírico ironiza o nacionalismo superficial e desmistifica a imagem do poeta idealista. Em “Europa, França e Bahia”, a crítica ao colonialismo europeu e a exaltação (também irônica) do Brasil revelam o desconforto com os modelos estrangeiros e a busca de uma identidade nacional. Na mesma linha, “Sociedade” e “Poema do jornal” retratam a hipocrisia social, o sensacionalismo da mídia e a banalização da violência; temas que continuam atuais e que demonstram a capacidade do poeta de diagnosticar, com precisão cirúrgica, as mazelas do mundo moderno.
Drummond dialoga com a tradição de forma crítica e inventiva, ou seja, recorre a intertextualidade (e entre os recursos intertextuais está a paródia). Em “Europa, França e Bahia”, há uma paródia explícita da “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, que desconstrói a idealização da pátria. Em “Poema de sete faces”, o verso “Mundo, mundo, vasto mundo” remete à dimensão cósmica da existência humana e pode ser lido como eco de poetas do Barroco e do Romantismo, como Gregório de Matos e Álvares de Azevedo.
Esse uso da paródia – uma marca do Modernismo heroico da Primeira Geração – permite a Drummond atualizar os temas clássicos, rindo dos clichês da tradição poética ao mesmo tempo em que os reinventa.
Seguindo essa linha da paródia, o humor se torna um dos traços mais notáveis do livro. Mas trata-se de um humor sofisticado, por vezes melancólico, que encobre um profundo desencanto. Drummond não ri do mundo porque acha tudo engraçado, mas porque a ironia é a única forma de suportar o absurdo da existência. Essa postura aparece com nitidez em “Cidadezinha qualquer”, cujo último verso: “Eta vida besta, meu Deus” resume, com maestria, a sensação de tédio e imobilidade da vida provinciana, num tom paradoxalmente cômico e trágico.
Na Antologia poética, publicada em 1962, o próprio Carlos Drummond de Andrade classificou tematicamente a sua poesia, dividindo sua obra em nove grandes temas, oito dos quais já aparecem em Alguma poesia:
Alguma poesia é, portanto, mais que um livro de estreia: é um marco fundacional da lírica moderna no Brasil. Ao unir a linguagem coloquial ao lirismo filosófico, a crítica social à introspecção, a epigrama ao poema lírico, Drummond inaugura uma nova sensibilidade poética. Sua originalidade está em fazer do cotidiano matéria de poesia, do banal um espelho da condição humana, da linguagem comum um instrumento de revelação existencial. Com esse livro, Drummond mantém a poesia brasileira de seu tempo em diálogo com as vanguardas europeias (sobretudo o Cubismo e Futurismo) e inicia uma trajetória que o colocaria entre os maiores poetas do século XX.