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Márcio Moraes
no leito solidário de uma floresta altiva descansem por favor a minha poesia
Textos

Textos escolhidos de Cristiane Sobral (SASI 1ª Etapa)

por Márcio Adriano Moraes

Atriz, dramaturga, poeta, contista e professora, uma das vozes mais significativas da literatura afro-brasileira contemporânea, Cristiane Sobral nasceu em 1974, no bairro Coqueiros, zona oeste do Rio de Janeiro, e vive em Brasília desde 1990. Foi a primeira atriz negra formada em Interpretação Teatral pela Universidade de Brasília e, desde então, tem dedicado sua trajetória artística a uma luta contínua pela valorização da cultura negra e pelo combate ao racismo estrutural, com especial atenção à figura da mulher negra: seu corpo, sua voz, sua história e sua subjetividade.

 

A trajetória de Cristiane Sobral une teatro, literatura, ensino e militância. Estreou em cursos teatrais no SESC ainda na adolescência, participou de espetáculos com grupos estudantis, protagonizou peças como Uma Boneca no Lixo e Dra. Sida.  A partir dos anos 2000, publicou textos nos Cadernos Negros, um importante projeto literário de resistência e afirmação da literatura negra no Brasil que iniciou seus trabalhos com autores ligados, direto ou indiretamente ao Quilombhoje, instituição sem fins lucrativos criada em 1980 com o objetivo de incentivar pesquisas e publicar livros que tratam da africanidade na literatura brasileira. Entre seus livros solos, estão Não vou mais lavar os pratos (2010), Só por hoje vou deixar o meu cabelo em paz (2014) e Terra negra (2017).

 

Para o Vestibular SASI 1ª Etapa da UFVJM 2025 foram selecionados como leitura obrigatória para a prova de Literatura os seguintes textos: “Não vou mais lavar os pratos”, “Sonho de Consumo” e “Rosas lilás”. Todos eles tematizam a busca por autonomia, a construção da identidade negra feminina e a crítica ao sistema que silencia, condiciona e invisibiliza corpos racializados. Ainda que distintos na forma e no tom, os textos se ligam por um mesmo fio poético-político: a libertação.

 

Não vou mais lavar os pratos” é mais do que um poema: é uma declaração de emancipação, além de um rito de passagem. Nele, a voz lírica (feminina e negra) anuncia o rompimento com uma função historicamente atribuída a seu corpo: o serviço doméstico. “Comecei a ler”, declara, e a partir dessa descoberta, uma revolução interna se desencadeia. A leitura, nesse contexto, não é apenas uma atividade intelectual; é um portal de libertação, um instrumento de autorreconhecimento, um gesto de insubmissão.

 

Com uma linguagem marcada pela oralidade, pelo uso de anáforas (“não vou mais...”, “sinto muito”) e por imagens domésticas ressignificadas (os pratos, o lixo, o feijão), o poema reconstrói a cena cotidiana para revelar as violências simbólicas que nela se escondem. Ao se recusar a continuar “encobrindo a verdadeira sujeira”, o eu lírico realiza sua própria abolição e ironiza o passado escravocrata ao afirmar que leu a “assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo”.

 

Esse poema não grita apenas contra o trabalho não remunerado, mas também contra o apagamento intelectual e simbólico da mulher negra. A leitura, aqui, é força transformadora: ela alfabetiza não apenas letras, mas a própria história. O texto encerra-se com a projeção de um futuro repleto de travessas de prata e joias legítimas, não como consumo vazio, mas como símbolo de dignidade merecida e de valorização do que sempre foi negado.

 

Se “Não vou mais lavar os pratos” trata da ruptura com a domesticidade opressora, “Sonho de Consumo” avança sobre o território afetivo-sexual. O poema encena uma espécie de pacto amoroso em que a mulher negra, mais uma vez, ocupa o lugar de enunciadora e exige do outro, o parceiro masculino, atitudes que não se baseiem no fetiche, na performance viril ou na idealização romântica. “Se você me quiser”, avisa o eu lírico, será com cabelo trançado, filosofia lida, kama sutra decorado e telefone retornado. Em outras palavras: será com respeito, reciprocidade e consciência.

 

O título “Sonho de Consumo” traz em si uma ironia, já que, em vez de reafirmar o lugar da mulher como objeto a ser desejado, o poema subverte a lógica mercantil e devolve à mulher o poder de dizer “não” e de estabelecer critérios para o “sim”. A presença da sexualidade é marcada não pela submissão, mas pela agência: “Nem sempre vou querer sexo / Nem sempre vou dizer tudo / Ou acender a luz”. O corpo da mulher negra deixa de ser território colonizado pelo desejo alheio e se torna campo de negociação ética e estética.

 

Dessa forma, na estrutura condicional repetida (“se você me quiser...”), o poema constrói um discurso que exige do amor mais do que presença: exige cuidado, escuta, comprometimento com a contradição. O verso final: “Me ajude a ser uma mulher diante de um homem. / Quem disse que seria fácil?”, explicita a intenção da autora: reconfigurar as identidades de gênero como construção conjunta, e não como papéis fixos. O amor, aqui, é proposta política.

 

Num tom mais reflexivo e sensorial, “Rosas lilás” convida o leitor a caminhar com a narradora por uma cidade chuvosa e cinzenta. O poema em prosa descreve, com lirismo delicado, a busca por uma rosa lilás, flor rara, improvável de ser encontrada numa segunda-feira comum. Mas o que parece um texto sobre um passeio urbano logo se revela um ensaio existencial sobre a capacidade de sonhar, de resistir e de transformar o cotidiano em espaço de contemplação e esperança.

 

A narradora descreve seu trajeto com atenção aos detalhes: o chão molhado, os sapatos que não podem se sujar, o guarda-chuva velho, a música que não toca na “rádio subconsciente”. O texto transita entre cenas do presente (a ida ao trabalho), lembranças do passado (as crianças brincando de bem-me-quer, mal-me-quer) e projeções futuras (as rugas com desenhos de rosas lilás). Tudo é atravessado pela chuva, pela ausência, pela persistência.

 

Tal prosa poética é, acima de tudo, uma ode à sensibilidade como ferramenta política. Em vez de gritar, como no primeiro texto, ou de negociar, como no segundo, aqui a autora observa. E, nesse gesto de observação atenta, ela revela as ausências que estruturam nossa realidade: a falta de flores, de afeto, de infância plena, de velhice digna. Mas ela também afirma: ainda sonho, ainda espero, ainda abro a janela. A rosa lilás torna-se, assim, metáfora de tudo aquilo que falta, mas não morre como beleza, cuidado e desejo de vida.

 

Tomados em conjunto, os três textos de Cristiane Sobral constroem uma poética reflexiva da existência negra feminina. Em “Não vou mais lavar os pratos”, o foco é a recusa à servidão e a afirmação do saber como caminho para a autonomia. Em “Sonho de Consumo”, trata-se de redefinir as relações afetivas e sexuais a partir do respeito mútuo, do prazer partilhado e da recusa da dominação. Já em “Rosas lilás”, o texto se volta para a dimensão subjetiva e contemplativa, mostrando que resistir também é saber sonhar, cultivar o silêncio e nomear a beleza ausente.

 

A estética de Sobral, mesmo variando entre verso livre, poema em prosa e oralidade, mantém a constância do compromisso com a sensibilidade e com o resgate das experiências negras femininas silenciadas pela cultura dominante. Sua linguagem é acessível sem ser simplista; é direta, mas repleta de camadas simbólicas e ironias sutis. É uma arte feita para o palco, para o livro, para o corpo e para a sala de aula.

 

O que liga os três textos não é apenas o tema da mulher negra como sujeito de sua história, mas também a recusa em ceder à desesperança. Cristiane Sobral não idealiza a realidade, ela a expõe em sua crueza, mas também não a entrega à brutalidade sem luta. Seja rompendo, exigindo ou contemplando, suas personagens e eu líricos afirmam que há um lugar legítimo para seus corpos, suas palavras e seus sonhos.

 

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Márcio Adriano Moraes
Enviado por Márcio Adriano Moraes em 19/06/2025
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