por Márcio Adriano Moraes
Vivendo toda a sua vida durante século XVII, entre Brasil, Portugal e Angola (onde foi por degredo), Gregório de Matos Guerra (1636–1696) é o maior expoente da poesia barroca brasileira. Sua produção poética, de acordo com alguns críticos, pode ser assim, tematicamente, dividida: circunstancial, amorosa, religiosa e reflexiva; as quais trazem tensões de seu tempo por meio de uma linguagem marcada pelo cultismo (jogo de palavras, com uso recorrente de antíteses e paradoxos) e por um profundo senso crítico diante da realidade baiana e colonial. A análise de sua obra exige, dessa forma, não só uma atenção à estética barroca, mas também à conjuntura histórica do Brasil no século XVII: uma sociedade hierarquizada, escravocrata, marcada pela opressão colonial, pela hipocrisia religiosa e por intensos conflitos sociais. Didaticamente, sua poesia pode ser assim explicada:
I. Poesia de circunstância: sátira e encomiástica
A poesia satírica de Gregório de Matos é o traço mais famoso de sua obra, rendendo-lhe o apelido de “Boca do Inferno”. Essa vertente de sua poesia funciona como um instrumento de denúncia, expondo a decadência das instituições coloniais e o comportamento dos habitantes da cidade da Bahia. Em sonetos como “A cada canto um grande conselheiro”, “Triste Bahia!” e “Juízo anatômico da Bahia”, o poeta aponta para a corrupção generalizada, a desigualdade social e a inversão de valores, tratando com sarcasmo temas como a ascensão dos mulatos, a usura dos comerciantes reinóis e a ineficácia da justiça.
Sua sátira não poupa ninguém: nem padres, nem juízes, nem governadores. Em “Define a sua cidade”, Gregório reduz a Bahia a dois verbos com a letra “f”: “furtar” e “foder”, evidenciando a degradação ética da vida colonial. A crítica também se volta contra o sistema político, como em “Aos principais da Bahia chamados os caramurus”, nos quais ataca os mestiços que se arrogam nobres, e contra a Igreja, em poemas como “E nos Frades há manqueiras?”, em que associa os religiosos à devassidão. A linguagem aqui é agressiva, mordaz e desbocada, muitas vezes beirando a obscenidade. O poeta utiliza-se de recursos como antíteses, trocadilhos e jogos de palavras (característicos do cultismo barroco) para ampliar o efeito satírico, e seu estilo aproxima-se da tradição popular, ao mesmo tempo que se ancora na erudição de um bacharel letrado.
Já na poesia encomiástica, embora menos conhecida, Gregório demonstra habilidade em louvar figuras importantes, como o arcebispo D. João Franco de Oliveira ou o provedor da Fazenda Real. Ainda que utilize os mesmos recursos estilísticos, esse tipo de poema revela um Gregório mais contido, respeitoso, por vezes irônico de forma velada, o que revela seu domínio da ambiguidade barroca: é possível louvar com agudeza e ao mesmo tempo insinuar crítica.
II. Poesia amorosa: lírica e erótico-irônica
Na poesia amorosa, Gregório também revela sua complexidade e dualidade barroca. Sua lírica amorosa aproxima-se dos modelos petrarquistas, exaltando a beleza feminina, idealizando a amada e expressando a dor amorosa. Sonetos como “Discreta e formosíssima Maria” e “A uma saudade” revelam um poeta sensível, melancólico, em conflito entre o desejo e a espiritualidade. A mulher é ora anjo, ora fonte de perdição, reflexo do conflito barroco entre corpo e alma, matéria e espírito. A imagem da flor que murcha com o tempo é constante, o que remete ao tema do “carpe diem” e da fugacidade da vida.
Já nos poemas erótico-irônicos, Gregório assume um tom debochado e escrachado. Mulheres são representadas em sua sexualidade, freiras são ridicularizadas, e o erotismo é explorado de forma escancarada. O célebre poema “A uma freira que lhe chamou Pica-flor” exemplifica bem esse humor obsceno, com trocadilhos e insinuações sexuais. A linguagem aqui é popular, libertina, e muitas vezes choca pelo uso de expressões vulgares. Contudo, mesmo nesses poemas, há engenho verbal, domínio das formas poéticas e crítica velada à hipocrisia da sociedade colonial.
Essa duplicidade do amor — ora espiritualizado, ora carnal — evidencia o espírito barroco do poeta, que vive entre a contemplação da beleza ideal e o gozo dos prazeres sensoriais. A contradição não é só temática, mas estilística: do soneto bem elaborado ao mote zombeteiro, Gregório trafega com maestria entre o sublime e o grotesco.
III. Poesia religiosa
A poesia religiosa de Gregório de Matos é marcada pelo arrependimento, pela busca da salvação e pela tensão constante entre fé e pecado. Em sonetos como “A Jesus Cristo Nosso Senhor” e “Ao Divino Sacramento”, o poeta se dirige a Deus com súplica e humildade, confessando sua vida dissoluta e pedindo misericórdia. Essa vertente dialoga com a espiritualidade da Contrarreforma, em que o ser humano é visto como pecador por natureza e necessita da graça divina para alcançar a redenção. Apesar de uma vida cercada de escândalos e provocações, a poesia religiosa de Gregório é comovente em sua sinceridade, refletindo uma alma que, ainda que entregue ao mundo, anseia por salvação. É como se a poesia fosse, nesse campo, não uma performance, mas uma confissão, um momento de recolhimento diante de Deus.
IV. Poesia reflexiva
Embora tradicionalmente menos destacada, a poesia reflexiva de Gregório é fundamental para compreendê-lo como pensador do barroco. Em poemas como “Aos vícios”, ele apresenta um juízo universal sobre a condição humana: “Todos somos ruins, todos perversos, / Só nos distingue o vício e a virtude”. Aqui, o poeta abandona o ataque direto a personagens ou instituições e se volta para o exame da alma humana, expondo as contradições e misérias de todos os homens, inclusive as suas. Essa poesia se aproxima do tom filosófico estoico, apontando que a natureza humana é corrompida e que, em última instância, não há diferença entre os homens: o que os distingue é a escolha que fazem entre o bem e o mal. Há aqui também uma dimensão ética importante: o poeta reconhece sua própria perversidade, mas exige que apenas os mais virtuosos o censurem. Essa lucidez amarga é um dos traços mais profundos do barroco: viver é estar em queda, e a consciência disso não redime, mas permite olhar o mundo com agudeza. É nesse sentido que a poesia de Gregório é também filosófica, porque não apenas descreve a realidade, mas busca compreendê-la em sua complexidade.
Gregório de Matos é, portanto, um poeta complexo com uma obra contraditória, provocadora, mas profundamente humana. Sua linguagem essencialmente barroca é marcada pelo contraste, pelo excesso, pelo jogo engenhoso. O uso das figuras de linguagem — antítese, hipérbole, paradoxo, metáfora e metonímia — é recorrente e reflete o desconcerto do mundo que ele observa e vivencia. Historicamente, ele viveu em uma Bahia em transformação: entre o engenho e o comércio, entre o catolicismo da Contrarreforma e a sensualidade da vida colonial, entre o eruditismo europeu e a oralidade popular. Seus versos expressam essas contradições com virulência e beleza. Dessa forma, Gregório de Matos é, ao mesmo tempo, cronista da decadência, amante ardoroso, penitente pecador e pensador desenganado. Sua poesia não apenas sobrevive aos séculos: ela ainda pulsa, fere e ilumina.