× Capa Meu Diário Textos Áudios E-books Fotos Perfil Livros à Venda Prêmios Livro de Visitas Contato Links
Márcio Moraes
no leito solidário de uma floresta altiva descansem por favor a minha poesia
Textos

Opúsculo humanitário, de Nísia Floresta

por Márcio Adriano Moraes

Opúsculo humanitário, publicado por Nísia Floresta em 1853, é um marco inaugural e paradigmático na reflexão sobre a condição da mulher no Brasil. Em seus 62 artigos, a autora articula crítica social, proposta pedagógica e uma visão de mundo moldada por valores morais e cristãos. O livro pode ser lido como um documento histórico, uma crítica cultural e um texto programático que antecipa debates sobre gênero, educação e civilização em terras brasileiras.

 

Conforme a divisão sistematizada pelo professor Eduardo Calbucci, a obra está articulada em dez blocos interdependentes. Corroboramos com essa divisão a qual se torna fundamental para compreender o alcance e os limites do projeto pedagógico e moral da autora.

 

Nos artigos de I a V, Nísia resgata a condição feminina desde a Antiguidade até a Idade Média. É um percurso que evidencia a preocupação iluminista e historicista da autora: ela defende que a mulher sempre teve papel determinante na moralidade e na civilização dos povos. Da submissão extrema à relativa autonomia conquistada em algumas sociedades, a autora traça um quadro comparativo que visa legitimar a centralidade da mulher, mas não como protagonista pública, e sim como guardiã moral do lar. Essa abordagem histórica cumpre uma dupla função: por um lado, demonstra erudição e diálogo com a filosofia iluminista; por outro, prepara o terreno para justificar a urgência de uma educação feminina adequada às necessidades morais de qualquer sociedade civilizada.

 

Avançando para os artigos VI a XVI, Nísia analisa a situação da mulher nas nações mais ricas e desenvolvidas: Alemanha, Grã-Bretanha, França e Estados Unidos. Essa comparação é particularmente relevante, pois articula a obra com o debate transnacional sobre a educação feminina no século XIX. Nísia faz elogios pontuais ao sistema educacional germânico e à disciplina moral da mulher alemã. Reconhece também a influência de autoras como Harriet Beecher Stowe, que, com A Cabana do Pai Tomás, representaria para ela o ideal de mulher educada e cristã, símbolo da mulher-mãe civilizadora. Porém, a análise não é mero tributo à Europa: a autora busca, nesses modelos, inspiração para a regeneração brasileira, sempre ancorada em valores cristãos e no projeto moralizador da família.

 

Nos artigos XVII a XXV, o foco recai sobre a mulher na história colonial do Brasil. Aqui, Nísia Floresta demonstra consciência crítica ao atribuir à colonização portuguesa o atraso educacional e moral da mulher brasileira. Ela denuncia a ausência de academias e de políticas de instrução pública para meninas, contrastando o Brasil com países europeus. Sua crítica à herança colonial lusitana, porém, não chega a questionar o sistema patriarcal de forma radical, e isso marca o limite do progressismo de sua obra.

 

Já nos artigos XXVI a XXXI, a autora discute os problemas específicos da educação feminina no Brasil e as diferenças entre homens e mulheres. Nísia rejeita a ideia, muito comum em sua época, de que as mulheres seriam naturalmente incapazes de alcançar altos níveis de instrução. Afirma que a inteligência não tem sexo e que o acesso ao saber deve ser ampliado para as mulheres, pois sua educação repercute diretamente no progresso da sociedade. Esses artigos defendem a educação feminina, mas sempre subordinada à formação da mulher como esposa e mãe, não como cidadã política ou líder social.

 

A partir dos artigos XXXII a XXXVIII, Nísia expõe as dificuldades da educação, sobretudo a feminina, no Brasil independente. Critica as escolas públicas e privadas que proliferavam como “especulações” de interesse financeiro, sem compromisso pedagógico. Essa crítica ganha força quando a autora denuncia os diretores estrangeiros e brasileiros despreparados, que dirigiam colégios apenas para lucrar, sem oferecer formação moral ou intelectual consistente. Essa denúncia ecoa até hoje, pois antecipa discussões contemporâneas sobre a mercantilização do ensino e a necessidade de regulamentação estatal.

 

Nos artigos XXXIX a LI, o foco desloca-se para a responsabilidade das famílias, em especial das mães, na formação das meninas. Nísia defende que, antes de qualquer escola, o lar deve ser o espaço privilegiado da educação moral feminina. A mãe instruída seria a verdadeira “flor de estufa” que preservaria a filha das impurezas do mundo externo. Essa visão revela o traço conservador da obra: se por um lado reivindica o acesso feminino ao saber, por outro a restringe ao papel de mãe e esposa, reforçando o confinamento doméstico e a autoridade masculina.

 

Na sequência, os artigos LII a LIV abordam a condição feminina nas classes populares. Aqui, Nísia reconhece que a mulher pobre enfrenta uma dupla opressão: de classe e de gênero, lamentando a falta de oportunidades educativas e de respeito social. Apesar de seu tom paternalista, esses artigos são relevantes porque revelam que a autora não ignorava a desigualdade social e via na educação um possível instrumento de elevação moral e material para as mulheres pobres.

 

Nos artigos LV a LVII, Nísia apresenta a religião como fundamento indissociável da educação feminina. A fé cristã é vista como “cadeia de ouro” que liga a mulher aos seus deveres morais. Essa defesa da religião como disciplina moral reforça a visão de mundo conservadora da autora, que vê na mulher a guardiã da virtude cristã no seio familiar.

 

Os artigos LVIII a LXI são dedicados à mulher indígena. Nísia idealiza a mulher indígena como fiel e pura, num explícito alinhamento do indianismo romântico do século XIX. Ela elogia suas virtudes morais, mas também as submete ao olhar civilizador cristão, propondo a catequização como caminho para sua integração. Essa postura revela a tensão entre o reconhecimento das qualidades indígenas e a defesa de uma cultura europeia superior, um dilema colonial que perpassa a obra.

 

Por fim, o artigo LXII funciona como exortação final: um chamado à sociedade brasileira (pais, governo e cidadãos) para que reconheçam a necessidade de educar as mulheres como passo essencial para o progresso da nação. Nísia conclui reafirmando a mulher como “modelo moral” do lar, cuja formação educacional deveria ser instrumento para regenerar a família e, por extensão, a pátria.

 

Essa divisão temática e progressiva faz do texto de Nísia um projeto ideológico e pedagógico que funde erudição, fé religiosa, crítica social e valores burgueses do século XIX. A articulação entre passado (história das mulheres), presente (crítica à educação brasileira) e futuro (propostas de reforma) confere à obra o caráter de um ensaio filosófico e sociológico, o que a faz transcender seu tempo.

 

Estilisticamente, Opúsculo humanitário revela uma prosa rica e polida. A linguagem de Nísia Floresta mescla o didatismo do artigo de jornal com o lirismo de imagens poéticas, como as metáforas da flor de estufa e da flor de jardim, que expressam a tensão entre reclusão e exposição. O vocabulário elevado, a pontuação clássica e as inversões sintáticas demonstram a formação erudita da autora, que cita pensadores europeus com autoridade intelectual. Ao mesmo tempo, essa erudição serve para legitimar seu discurso em uma sociedade que relegava a mulher ao silêncio público.

 

Por outro lado, a obra revela seus limites. Embora seja pioneira ao inserir a mulher no centro do debate educacional, Opúsculo humanitário não rompe com a divisão sexual do trabalho e a hierarquia patriarcal. Nísia defende uma educação que vise a consolidar a mulher como “rainha do lar”, mas não como sujeito pleno de direitos políticos. Essa ambiguidade, que poderia ser lida como vanguarda e conservadorismo, faz d e sua obra um documento valioso para compreender o feminismo nascente no Brasil: um feminismo que pede saber/formação, mas ainda não questiona as estruturas de poder que oprimem as mulheres.

 

Em síntese, Opúsculo humanitário é uma obra que dialoga com a modernidade de seu tempo: iluminista e romântica, e antecipa debates que existentes até hoje. Seu valor está não apenas no conteúdo, mas na forma: na maneira como Nísia Floresta constrói um discurso coerente, informativo e persuasivo, que desafia a invisibilidade feminina e propõe um caminho de dignidade, ainda que restrito ao espaço doméstico. Ler esse texto é perceber a origem de muitas questões que, cerca de 170 anos depois, continuam a nos desafiar: qual o lugar da mulher? Qual o verdadeiro sentido da educação? E até que ponto instrução e liberdade caminham juntas?

 

1714126.png 1749952.png

Márcio Adriano Moraes
Enviado por Márcio Adriano Moraes em 02/06/2025
Comentários

 

ASSISTA NO YOUTUBE