por Márcio Adriano Moraes
Em 1899, o leitor brasileiro foi apresentado a uma obra que atravessaria os séculos como uma das mais enigmáticas e instigantes da literatura nacional: Dom Casmurro, de Machado de Assis. Desde sua publicação, o romance encanta gerações de leitores e estudiosos, e se impõe como um marco incontornável da literatura realista brasileira. A princípio, a trama pode parecer simples: um homem, Bento Santiago (Bentinho) narra a história de sua vida, especialmente os episódios relacionados a sua paixão de infância por Capitu, o casamento com ela e a dissolução dessa relação marcada por uma dúvida fatal. No entanto, por trás dessa aparência linear esconde-se uma intricada arquitetura narrativa, repleta de nuances psicológicas, críticas sociais e jogos de linguagem.
Narrado em primeira pessoa, Dom Casmurro é o relato memorialista de Bentinho, que, já maduro e recluso, resolve escrever suas memórias na tentativa de “atar as duas pontas da vida”, unindo o passado ao presente. Essa tentativa de reconstrução do passado, entretanto, é mediada por um narrador cuja confiabilidade é sistematicamente posta em xeque. O título da obra já carrega, desde o início, uma ironia machadiana: “Dom Casmurro” não é nome de nobreza ou de reconhecimento, mas sim uma alcunha irônica que Bentinho ganha de um jovem poeta num trem, por conta de seu jeito calado e introspectivo. A construção dessa persona literária já indica que teremos um narrador marcado pelo ressentimento, pela nostalgia e pela melancolia — elementos fundamentais para compreender a perspectiva enviesada de sua narrativa.
Ao longo do romance, Bentinho nos conduz por sua infância na casa de Matacavalos, onde conviveu com Capitu, menina de “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, cuja imagem se torna símbolo da ambiguidade feminina, ou melhor, daquilo que o olhar masculino, patriarcal e inseguro projeta como ameaça. A relação entre os dois cresce em afeto e cumplicidade, mas desde cedo já é atravessada por obstáculos sociais e religiosos: Bentinho é filho único de uma viúva rica e devota, dona Glória, que prometera à Nossa Senhora entregá-lo à vida religiosa. A tensão entre o desejo individual e os compromissos sociais e familiares é uma das chaves da narrativa.
A oposição entre o destino clerical de Bentinho e seu amor por Capitu é o primeiro grande conflito da trama. Contudo, essa tensão se resolve quando a vocação religiosa se revela como um subterfúgio do autor para criticar, com fina ironia, tanto a hipocrisia dos valores religiosos quanto a fragilidade das vontades humanas. Ao ser retirado do seminário com a ajuda de Escobar, seu grande amigo, Bentinho casa-se com Capitu. Aparentemente, o desfecho amoroso dos dois seria feliz. Todavia, a entrada de Escobar na narrativa, como contraponto masculino a Bentinho, abre espaço para o desenrolar do grande enigma do romance: a possível traição de Capitu e a paternidade duvidosa de Ezequiel.
A morte repentina de Escobar, em circunstâncias banais, serve como estopim para a intensificação de suas desconfianças. A descrição de Capitu no velório de Escobar é emblemática: ela chora demais, segundo Bentinho, o que reforça para ele o indício de que havia entre os dois algo mais do que amizade. Assim, a suspeita do adultério surge de forma insidiosa e se torna obsessão na mente de Bentinho. Ele passa a ver em cada gesto, em cada olhar de Capitu, sinais de culpa e dissimulação. Mas o texto não oferece nenhuma prova concreta. Tudo o que sabemos nos é dito por Bentinho, e sua visão está visivelmente contaminada por ciúmes, inseguranças e talvez por recalques inconscientes. Em outras palavras, o adultério nunca é confirmado nem negado — ele é uma hipótese, uma suspeita, um fantasma que assombra a mente do narrador.
É justamente nesse jogo de sombras e dúvidas que reside a genialidade de Machado de Assis. A construção de Bentinho como narrador-personagem não apenas levanta questões sobre a veracidade dos fatos relatados, mas convida o leitor a desconfiar da própria narrativa. Machado antecipa, com maestria, os debates modernos sobre o narrador não confiável, uma figura hoje clássica nos estudos literários. Ao colocar o leitor diante de uma perspectiva parcial, marcada por ciúmes e ressentimento, o autor o obriga a adotar uma postura ativa, crítica, desconfiada.
Capitu, por sua vez, torna-se uma das personagens femininas mais complexas da literatura brasileira. Longe de ser apenas uma mulher adúltera, como Bentinho tenta pintá-la, ela pode ser interpretada como vítima de uma mentalidade machista que não admite a autonomia e a inteligência da mulher. Sua personalidade firme, seu olhar enigmático e sua capacidade de argumentação e independência contrastam com a insegurança passiva de Bentinho. Ela é, portanto, uma personagem que escapa às categorias fáceis de rotulação. A famosa ambiguidade de seus “olhos oblíquos” torna-se metáfora de uma narrativa que nunca se deixa apreender por completo.
Outro aspecto digno de nota é a crítica social sutil que perpassa o romance. Embora centrado na esfera íntima das relações amorosas e familiares, Dom Casmurro está repleto de observações irônicas sobre a sociedade carioca do século XIX. A ascensão de Escobar, por exemplo, simboliza o novo homem burguês, empreendedor, que contrasta com o Bentinho aristocratizado, preso aos valores do passado. Há, também, críticas ao clero, à educação tradicional e às convenções hipócritas da elite. Tudo isso, porém, é feito com o estilo inconfundível de Machado de Assis: uma escrita elegante, econômica, repleta de digressões e reflexões metalinguísticas.
O romance, portanto, não é apenas um drama amoroso, mas também um estudo da memória, da identidade e da percepção. Ao tentar reconstituir seu passado, Bentinho o reescreve, filtrando-o por sua subjetividade. A casa do Engenho Novo (réplica da de Matacavalos) que ele reconstrói no presente é uma metáfora perfeita para esse esforço: trata-se de uma reprodução artificial, idealizada, daquilo que se perdeu. Assim, o romance questiona a própria possibilidade de se conhecer o passado e a si mesmo com objetividade. A memória, para Machado, não é um arquivo fiel, mas um palimpsesto no qual o desejo, a culpa e o autoengano se sobrepõem.
Ao fim da leitura de Dom Casmurro, o leitor é deixado em suspenso. Capitu traiu ou não traiu? A pergunta, talvez, seja menos importante do que o modo como ela se inscreve na psique do narrador e na estrutura do romance. A dúvida é o motor da narrativa e o reflexo da complexidade humana. Ao recusar-se a oferecer uma resposta definitiva, Machado rompe com o realismo simplificador e se aproxima de uma literatura mais moderna, que entende o sujeito como instável, contraditório e fragmentado.
Em suma, Dom Casmurro é muito mais do que um romance sobre ciúmes e traição: é uma profunda reflexão sobre os limites da verdade, sobre as armadilhas da memória, sobre as construções sociais do amor e da culpa. Com uma prosa magistral e um domínio absoluto da ironia, Machado de Assis criou uma obra-prima que resiste ao tempo porque fala diretamente às inquietações mais íntimas da condição humana. Ler Dom Casmurro é, portanto, mergulhar em um abismo de dúvidas, não para encontrar respostas, mas para aprender a conviver com elas. É reconhecer que, muitas vezes, o maior enigma não está no outro, mas em nós mesmos.