por Márcio Adriano Moraes
No Diário Íntimo, de Lima Barreto, podemos ler as primeiras referências a Clara dos Anjos, datadas de 1904. Este romance que só seria publicado após a morte do autor, na verdade, foi o seu primeiro trabalho. Escrito em forma de conto e, por fim, transformou-se em um romance. Em forma de conto, teve uma publicação na coletânea Histórias e sonhos, em 1920. Em 1922, um de seus capítulos foi publicado na revista Mundo Literário. Lima Barreto seguia o costume da época de publicar capítulos em jornais (como nos folhetins românticos) para depois reuni-los e lhes dar formato de livro. É claro que houve muitas alterações até chegar ao resultado final. Fato é que o próprio Lima Barreto, em seu primeiro livro publicado, Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), de grande teor autobiográfico, deixou esta menção àquele que seria o “filho”, gerado por toda a sua trajetória de escritor: “Cinco capítulos da minha Clara estão na gaveta; o livro há de sair...” (BARRETO, 1990, p. 219).
Saiu. Talvez não como ele esperasse que saísse, mas saiu. Não viveu para ver sua recepção, mas nos legou esta denunciante história dos subúrbios cariocas. Dessa forma, Clara dos Anjos levou dezoito anos para ser concluído, vindo a público apenas em 1922. Seu enfoque é simples: uma moça mestiça pobre, seduzida sexualmente por um branco “rico”. Eis, portanto, a denúncia do preconceito racial e social.
Pertencente ao chamado pré-modernismo brasileiro, a obra traz a herança do realismo-naturalismo do século XIX. O meio, a raça, o momento são fatores determinantes nas ações humanas. A obra de Lima Barreto poderia ser enquadrada dentro dos Romances de Tese, pois ratifica o pensamento proposto pelo francês Hippolyte Taine de que o ambiente, a hereditariedade e o momento histórico são causas naturais que, consequentemente, determinam o comportamento humano. Dessa forma, a literatura de Lima Barreto recorrerá a essa teoria cientificista, evidentemente, a partir de uma história ficcional de caráter verossímil, propondo uma reflexão crítica da sociedade.
Estamos, pois, no Brasil da primeira República (1889-1930), período marcado pela desigualdade social, pelo racismo institucionalizado e pela exclusão dos mais pobres da vida política e cultural. A recém-abolição da escravidão (1888) não significou inclusão para os negros: eles continuaram à margem da sociedade, enfrentando preconceitos e limitações sociais severas.
Através de um tempo predominantemente cronológico, a narrativa é conduzida por um foco narrativo em terceira pessoa, através de um narrador onisciente, que muitas vezes adota um tom crítico e irônico, comentando sobre a sociedade e os personagens com distância, mas também com evidente compaixão pelos mais humildes. O enredo se ambienta no subúrbio carioca, o qual se torna o cenário principal da história, caracterizado como um espaço de pobreza, mesquinharia, conservadorismo e exclusão social.
A narrativa se inicia com a descrição da vida de Joaquim dos Anjos, carteiro de origem simples e modesto, casado com Dona Engrácia. Ele gosta de música e toca flauta, símbolo de sua ligação com as tradições populares. Sua filha, Clara dos Anjos, é uma jovem negra, educada de forma muito protegida, com pouco contato social. Educada para ser recatada e dedicada às tarefas femininas (bordado, costura), ela é criada com inocência e submissão, num contexto social que limita profundamente as possibilidades das mulheres pobres e negras.
Em paralelo à história dos Anjos, está a trajetória de Cassi Jones de Azevedo, personagem que encarna a malandragem e a degradação moral. Cassi é descrito como um jovem branco, de aparência medíocre e caráter duvidoso. Filho de uma família que preserva valores de status social (sua mãe, Dona Salustiana, se julga descendente da nobreza), Cassi é fruto de uma educação frouxa e permissiva, seduz moças ingênuas usando o violão e a modinha como armas de conquista. Sua mãe o protege, enquanto seu pai, Manuel de Azevedo, severo e honesto, desaprova o comportamento do filho, mas não consegue contê-lo. Antes de se envolver com Clara, Cassi causa a desgraça de outras jovens, levando inclusive ao suicídio da mãe de uma de suas vítimas. Contudo, sempre escapa impune, protegido por sua posição social, sua branquitude e as manobras da família.
Dessa maneira, Clara dos Anjos é uma narrativa em antítese, na qual percebemos uma estrutura maniqueísta; de um lado há os favorecidos, de outro, os não-favorecidos; de um lado o branco malandro, do outro a mulata ingênua, de um lado os imorais, do outro os morais.
Sendo um livro que fora gerado, praticamente, durante toda a vida literária de Lima Barreto, o leitor encontra em Clara dos Anjos o projeto literário do autor: valorização do nacional, aversão ao estrangeiro, preconceito racial, condição social do suburbano, denúncia política, desvalorização do artista humilde, crítica à burguesia, vícios do álcool, retrato da condição da mulher, abuso de moças pobres e mestiças.
Vemos, na obra, um enfoque na sexualidade, principalmente, a feminina, a qual era, para a sociedade da época, algo muito sério. A imagem da mulher pura e casta simbolizava moralidade e pudor. A mentalidade incutida nas mulheres, historicamente, era a de se preparar para o casamento. E essa preparação incluía a sua pureza sexual. Mulheres dadas ao prazer eram tidas como meretrizes. Dessa forma, os ditames de uma sociedade tipicamente patriarcal exigiam a criação das filhas com muito zelo.
A personagem Clara sintetiza os pensamentos acerca da mulher de sua época. Porém, paga um preço caro por isso. Segue a sina de tantas outras moças que, como ela, foram enganadas por juras de amor de um falsário. Foi preciso que Clara se perdesse, foi preciso que ela sentisse na pele a rejeição de seu ser, por ser mulher, por ser pobre e por ser negra. A consciência de sua condição no mundo lhe vem através de dor e sofrimento. A narrativa, dessa forma, nos mostra uma regra, a de que homens da estirpe de Cassi Jones, nesse país de hipocrisia e privilégios, ficam impunes a seus atos pavorosos.
Um Brasil em transformações sociais e políticas é retratado por Lima Barreto com o fim de chocar, provocar o leitor de seu tempo e de todas as gerações. Apesar de situar bem o espaço de sua narrativa, Rio de Janeiro, bem como o tempo, final do século XIX e início do século XX, a obra de Barreto ganha contornos universais, pois a realidade desse tempo ainda se arrasta, com algumas conquistas, evidentemente, mas ainda distante de se extinguir.
Com uma linguagem simples e direta, desprestigiada em seu tempo, Lima Barreto, corajosamente, afronta a literatura bem-comportada de sua época. Não menos ousado, insere nas páginas literárias seres estigmatizados, excluídos por uma sociedade burguesa de ares parisienses, o suburbano, o mestiço, a mulher.
“Nós não somos nada nesta vida”, a última frase dita por Clara a sua mãe mostra uma verdade dolorosa. Assim, em Clara dos Anjos, Lima Barreto faz ecoar o canto silenciado dos que, entre becos suburbanos e olhares indiferentes, sonham sem nunca alcançar. Clara é mais do que uma jovem ingênua: é a imagem viva da esperança que murcha antes de florescer, esmagada pelo peso de um mundo racista, hipócrita e desigual. Entre as modestas casas e os trilhos do subúrbio, pulsa a denúncia de uma sociedade que nega espaço e voz aos seus filhos mais vulneráveis. E é nesse pulsar triste e belo que a literatura de Barreto encontra sua eternidade: no gesto de olhar para os esquecidos e transformá-los, ainda que tarde, em palavra viva.