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Márcio Moraes
no leito solidário de uma floresta altiva descansem por favor a minha poesia
Textos

Felicidade clandestina, de Clarice Lispector

 
Clarice, eu não leio você para a literatura, mas para a vida. (Guimarães Rosa)

 

Clandestino, o que é feito às escondidas, ilícito, o que não se pode fazer em público por não estar em conformidade com a lei. De fato, a felicidade da menina Clarice, em seu conto, era magnamente secreta. Uma alegria que estava em seu coração, oriunda de um “fruto proibido” que estava ali à sua frente. Um fruto que iria saboreando bem devagar, talvez com um gosto de nunca acabar: a Literatura.

Narrado em primeira pessoa, por um narrador-personagem feminino, lemos, por trás das letras, a experiência da menina Clarice, quando morava no Recife, Pernambuco. Seguindo o fluxo de consciência, o tempo psicológico aciona na mulher as lembranças do tempo de criança. O tempo da enunciação é, pois, diferente do tempo do enunciado. A recordação de uma experiência literária ativa a memória do autor para relembrar um aparte mágico de sua vida. Uma viagem memorialística se instaura aí. Um percurso que nos é revelado pela palavra genuína de uma mulher-criança.

Apesar de ser um conto narrado em primeira pessoa, devemos nos ater a quem conta a história. É uma mulher madura que, mediante o fluxo de consciência, transporta-se à sua infância para nos relatar uma experiência em torno do empréstimo de um livro. Distanciando-se do tempo da ação, a autora assume características típicas de um narrador em terceira pessoa, quando, por exemplo, revela aspectos psicológicos das personagens: “Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar”. Esse recurso é conhecido como discurso indireto livre.

Ainda que o tempo seja psicológico, o enredo possui uma linearidade e estrutura narrativa tradicional. A apresentação e caracterização das duas principais personagens – a filha do dono da livraria e a narradora – se dá logo no início; segue a complicação: querer o livro emprestado e submeter à “tortura chinesa”; o ponto de maior tensão, ou seja, o clímax: quando as duas meninas estão frente a frente, diante da mãe; e, por fim, o desenlace: de posse do livro, a narradora experimenta a sua felicidade clandestina.

o conto traz uma reflexão sobre a valoração da leitura a qual encontra correspondências antitéticas nas duas personagens centrais. Apesar de ser filha de um dono de livraria, a menina ruiva não usufruía dessa dádiva. É significativa a fala da narradora-personagem: “possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava”. Isso nos faz pensar no famoso ditado de que “quem tem, não dá valor”.


O cerne do conto está na esperança de se ter um livro emprestado. Tal livro representava para a narradora um objeto ou ser de grande valor, aquele que lhe traria felicidade. Quanto a isso, é interessante pensar filosoficamente e religiosamente o que seria felicidade.

 

As Reinações de narizinho, de Monteiro Lobato, publicado em 1931, um dos expoentes da literatura infantil brasileira, foi o livro ovacionado no conto “Felicidade Clandestina”. Nessa obra, Lobato reúne vários contos infantis, lendas, estórias fantásticas em um único lugar, num sítio maravilhoso de gosto nativo, como um beijo de um pica-pau amarelo.


Que possamos nós também, como a menina Clarice, esperar que o reino fantástico da literatura nos seja emprestado. Por vezes, o mundo nos fixa tanto que nos esquecemos de que podemos andar pulando pelas ruas da cidade. Sujeitamo-nos à imperiosa razão, com seu busto enorme a nos intimidar. Mas tenhamos esperança de que um dia, a mãe-memória possa nos lembrar de que melhor que este mundo é o maravilhoso universo da imaginação. Aí, quando estivermos atravessado a via, e de posse das palavras, deixaremos que a criança cresça, ou melhor, deixaremos que o adulto às palavras do infante se renda.
 
Para ler uma análise completa e resolver questões sobre a obra, adquira o livro O humano insano e as palavras do infante em Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

Márcio Adriano Moraes
Enviado por Márcio Adriano Moraes em 29/07/2014
Alterado em 05/02/2024
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